quinta-feira, outubro 27, 2005

José, o criador de pássaros

Há uns valentes anos atrás, quando ainda não víamos televisão e nos sentávamos à volta da lareira a contar histórias e comer caldo com broa, que a minha mãe preparava enquanto o meu pai não chegava da floresta, contavam-se histórias em família. O meu pai chegava, pousava o machado, tirava as botas e as jardineiras e, em ceroulas, juntava-se a nós. Num desses dias de Outono frio, saiu-se com uma história que ia mais ou menos assim:

“José era um criador de passarada num palácio das Arábias. O Senhor do Palácio gostava de ver o voo dos pássaros e de juntar várias espécies no mesmo jardim. Para tal tinha mandado construir uma rede imensa, que cobria toda a extensão do parque natural, onde mantinha desde pardais, passando por corujas e chegando até aos papagaios. A rede estava lá não fossem os pássaros fugir para os desertos circundantes, onde acabariam por morrer. Mesmo no interior do parque era necessário ter cuidados especiais. Alguns passarinhos, apesar de fazerem sempre muito barulho, não eram auto-suficientes. Como tal era necessário gastar muito dinheiro na alimentação, limpeza e tratamento veterinário. Tal empresa requeria cuidados constantes, funcionários dedicados e uma coordenação exemplar. Para isso havia sempre um ornitólogo de topo no cargo de Chefe. José era o Chefe actual. Antes de si os tempos não tinham sido os mais pacíficos... Um dos Chefes tinha saído por achar que os pássaros não gostavam dele, outro saiu porque arranjou um lugar de Chefe no Reptilário, e todos os Chefes queriam acabar por ir para lá. Por fim, o Chefe imediatamente anterior a José saiu porque era mesmo muito incompetente... José chegou então ao poder numa situação de crise. As rações não davam para todos, os veterinários também não e a limpeza era ineficaz. José prometeu tomar medidas urgentes, muito inovadoras, com uma organização mais controlada da população através de meios avançados para a época. Chamou-lhe o choque ornitológico. Como sempre houve quem rejeitasse as medidas apresentadas e até quem quisesse destruir a imagem pública de José, insinuando que o criador teria preferência por determinadas aves em detrimento das outras. Por sinal flamingos. Apesar de tudo, as políticas lá começaram a ser implementadas muito devagarinho...
Os meses passaram e José foi gerindo razoavelmente o parque... Até que um dia o flagelo bateu à porta. Uma gripe atingiu todas as aves e os cuidados a ter com algumas tiveram de ser intensificados. Para fazer face à escassez de recursos, em grande parte devida às danosas gestões anteriores, José teve de cortar regalias a sectores minoritários da população... Aos morcegos, por exemplo. Estes tinham um poder importante na sociedade dos pássaros e cortar-lhes regalias era algo de perigoso e até insensato. Mas José fez-lhes frente e ainda foi mais longe. Cortou regalias às corujas e às codornizes também. E cortou quase todas as regalias que eles detinham em relação ao resto da passarada. Pensando bem, sabendo que os pássaros têm cérebros do tamanho de ervilhas, teria sido melhor fazer as coisas aos poucos, de forma a que eles nem reparassem no que lhes ia acontecendo. Mas não. José era novo e queria fazer tudo de uma vez. E fez.
Passados uns tempos, José teve de ser substituído no seu cargo. É que, para além de ter optado por fazer tudo ao mesmo tempo, José cometeu o grave erro de ter subestimado a classe dos morcegos... Esqueceu-se que eles, apesar de voarem como os outros, não são pássaros... São mamíferos sugadores de sangue. E José abandonou o parque com uns litros a menos do que os que tinha quando entrou.”