quinta-feira, fevereiro 09, 2006

os cartoons heréticos - III

Ao meu amigo administrador:

A questão que coloco é a seguinte: devem ou não os cartoonistas ter o direito de expor as suas ideias, convicções, opiniões sob a forma da sua arte?

Colocas a questão da co-implicação entre liberdade e responsabilidade. Como dizes só poderei ser responsabilizado se me deixarem ser livre. Mas como se podem propor modos de responsabilizar a priori o uso da liberdade individual? Eu poderia aceitar uma sustentação desses modos em casos muito diferentes dos que estão em causa. Vejo, por exemplo, como perfeitamente razoável que crianças que estão em fase de amadurecimento da sua personalidade sejam protegidas de emissões de pornografia às 5 da tarde. Aqui estaria em causa a salvaguarda de direitos que a nossa civilização aceita como essenciais.

Mas a questão é diferente. O que eu vi nestes cartoons forem ideias e opiniões (sob a forma de desenhos humorísticos – como poderia ser sob a forma de uma crónica de opinião, ou uma outra qualquer forma de expressão) de gente livre e adulta que sabe pensar para gente supostamente livre e adulta que também supostamente sabe pensar. Ambos têm o dever de fazer uso da sua razão. Se não aceitamos este pressuposto, estamos a admitir que as pessoas que se sentem feridas com estas “provocações” não estão ao mesmo nível que as pessoas que aceitam este tipo de piadas como forma de pensar e pôr em causa os seus pensamentos e convicções. Mas se assim é, não há nada a fazer: que adianta falar com crocodilos? O esforço no uso da razão é condição necessária de qualquer diálogo inteligível que se queria estabelecer. O outro modo possível é a bomba e o José Cid. Considero que neste caso concreto vedar a possibilidade dos cartoonistas exporem os seus pensamentos seria uma forma de censura ilegítima: um retrocesso civilizacional, ao nível dessa gente perigosamente tacanha que propõe a morte de pessoas inocentes como forma eficaz de resposta.

Estes cartoonistas agiram eticamente? Para responder a esta pergunta, devemos perguntarmo-nos: o que significa agir eticamente? Proponho uma resposta simples e que me parece bastante operativa: agir eticamente significa agir livremente segundos princípios que racionalmente acolhemos como significando aquilo que para nós é justo e correcto. Ou seja, agir segundo princípios e não segundos inclinações físicas, psicológicas, patológicas que constituam motivos outros que não os que acreditamos incluir-se na nossa ideia de justiça, mas que podem condicionar, impedir ou mesmo inverter o sentido das nossas acções. Estes cartoonistas agiram eticamente na medida em que agiram segundo aquilo que lhes ditou a sua razão crítica na denuncia em relação a modos de pensar e viver que lhes parecem contraditórios, absurdos, cruéis e desumanos. E não abdicaram de o fazer com o medo patológico das consequências que podem resultar da estupidez flagrante de um conjunto de pessoas. Do ponto de vista estritamente ético, esta denuncia deveria mesmo ser levada a cabo por todas as pessoas que acreditam nestas ideias. E nunca o contrário: fugir a essa responsabilidade porque as coisas já estão “suficientemente inflamadas”. Estas manifestações constituem por si só mais um elemento desta análise crítica: sintomas visíveis de intolerância, de ódio em relação ao outro que ousa pensar diferentemente, de desrespeito implacável pelo ser humano.

1 Comments:

Blogger Freddy said...

O limite já nem é o céu... Pode-se fazer tudo (ou pensar que se pode) a coberto de neo-dtos fundamentais...

9/2/06 19:10  

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