sábado, fevereiro 11, 2006

os cartoons heréticos - V

Caro amigo

As nossas opiniões divergem criticamente. Não percebo realmente porque tenha que ser visto com menor “admiração” ou seja “menos respeitador” se não agir em consonância com o que uma dada religião dita. Penso, pelo contrário, que a uma crítica sistemática à religião enquanto fenómeno social, histórico e psicológico é de extrema importânciae. O que vejo amiúde fazer-se, como método de escape, é relegar a religião a uma experiência espiritual de tal modo íntima e preciosamente pessoal que qualquer tentativa de a objectivar social, histórica ou psicologicamente é vista como um atentado ímpio à sensibilidade das pessoas que a praticam. A história mostra-nos que sempre existiram práticas religiosas muito pouco éticas e que merecem ser objecto de crítica. No limite da tua proposta uma ceita que adore com todo o seu ânimo o Deus-Crocodilo e que proíbe a banalização gráfica da sua venerável divindade teria legitimidade em ter como um dos seus objectivos primeiros dizimar todos os que se arrogassem a vestir uma camisa Lacoste §. É um exemplo limite (não muito longe do que acontece de facto em certas zonas do planeta) do que pode ser uma estrutura religiosa erguida sobre os alicerces da irracionalidade.
Eu penso que é perfeitamente legítimo representar "graficamente" Maomé e não penso de modo algum que isso seja uma ofensa ou um acto de desrespeito. A nossa cultura, na qual me orgulho de pertencer, começa já a consolidar uma tradição essencialmente crítica que se pretende independente da sensibilidade da pessoa A ou de B. Estávamos muito mal se assim fosse. Aliás: é condição necessária e essencial da análise crítica que seja justamente isenta desse tipo de motivações. Eu orgulho-me de viver numa sociedade que de Nietzsche a Russell soube fazer um exame severo e inflexível não só das práticas religiosas como das próprias Escrituras. Será que também vês o Nietzsche do “Anticristo” ou o Russell do “Porque não sou cristão” como dois seres humanos que merecem menor admiração ou respeito porque ousaram criticar tanto as práticas de religiosos como a própria Bíblia e a figura de Cristo, ela mesma(1)? Eu, pelo contrário, tenho orgulho em poder lê-los e penso que se me sentisse cristão veria nestes textos não um atentado à minha sensibilidade espiritual, mas antes uma oportunidade de a fortalecer. Não entendo porque diabo uma “representação gráfica” deva ser vista de modo substancialmente distinto que uma análise textual acerca dos conceitos em jogo. Existe porventura uma imoralidade inerente à imagem?! Quando faço um desenho, uma caricatura neste contexto, o que pretendo é transmitir uma mensagem de modo exactamente análogo à que tentaria transmitir num texto de opinião, e não retratar a realidade concreta de um dado objecto. Reside logo aqui um dislate lógico elementar: é nas próprias escrituras que uma imagem do profeta é construída (guerreiro e conquistador, etc, etc, com direito até a elementos descritivos da sua fisiologia!) e estes delicados muçulmanos arvoram-se a anatemizar quem se atreve passar do mundo imaculado do pensamento ao papel: representante da contingência do mundo exterior, mundano, impuro. Se faço uma caricatura de Maomé implicando-o com o terrorismo não é porque queria incluir todos os muçulmanos dentro da Al Qaeda, ou pretenda implicar o islamismo com práticas terroristas, mas porque quero alertar para o absurdo de uma dada amostra de muçulmanos praticarem actos terroristas em nome do Islão. Há uma série de críticas urgentes a fazer em relação ao mundo islâmico e (porque não!?) aos próprios textos sagrados. A nossa cultura tem o dever de o fazer. Se acredito num sistema de valores que se baseia no respeito pela liberdade e dignidade humana não é porque devo ter em consideração o sentimento religioso de um dado individuo ou grupo de indivíduos que me vou demitir de denunciar aquilo que me parece precisamente contrário a esse sistema de valores.


(1) A título de exemplo recordo uma das conclusões de Russell: “Devo dizer que considero toda esta doutrina [cristã] – a de que o fogo eterno é um castigo para o pecado – como uma doutrina de crueldade. É uma doutrina que pôs crueldade no mundo e submeteu gerações a uma tortura cruel – e o Cristo dos Evangelhos, se pudermos aceitá-l’O como os seus cronistas O representam, teria, certamente, de ser considerado, em parte, responsável por isso.”