segunda-feira, março 02, 2009

Leituras...



Éramos peixes, percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal, simultaneamente ferozes e mansos, treinados para morrer sem protestos para nos estendermos sem protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem com a bandeira nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios, de medalha de identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um berro de revolta. (...)
Éramos peixes, somos peixes, fomos sempre peixes, equilibrados entre duas águas na busca de um compromisso impossivel entre a conformidade e a resignação, nascidos sob o signo da Mocidade Poruguesa e do seu patriotismo veemente e estúpido de pacotilha, alimentados culturalmente pelo ramal da Beira Baixa, os rios de Moçambique e as serras do sistema Galaico-Duriense, espiados pelos mil olhos ferozes da Pide, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra, ao som das marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, combatendo, combatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior, enquanto nós, os peixes, morríamos nos cús de judas uns após os outros...

António Lobo Antunes "Os Cús de Judas"

2 Comments:

Blogger Planeta a cores said...

BOM MESMO! Devorei os Lobo Antunes um a seguir ao outro. Com sorte, cresci com já vários editados. Os cus de judas é especial, bem, todos são.

Aqui a lembrar um pouco o Padre António Vieira.

26/3/09 15:19  
Blogger Me, Myself and I said...

Eu acordei tarde para a obra singular deste Sr.
Tinha-o como arrogante, aborrecido e até odioso. Até que o vi numa entrevista com a Ana Sousa Dias qdo tinha o seu programa na 2, nitidamente a brincar com as expectativas e os medos que uma personagem como a sua gera em quem o entrevista. Imprevisivel, seco, melancólico, genial, sagaz...talvez seja já a idade, talvez fsse uma noite particularmente feliz para as suas habilidades sociais. Sei que tinha que confirmar quanto do homem estava no que escrevia.
No dia seguinte, comecei pela "Exortação aos Corcodilos" que me deixou apanhado.
Depois segui para "Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo" que deixei a meio por um outro que já não recordo. Erro crasso...já não consegui encontrar de novo o fio da meada.
Os livros do Lobo Antunes têm essa peculiaridade de devorarem a nossa atenção para que surtam efeito, sugam-nos, consomem-nos, manipulam-nos...Não são decididamente livros de autocarro...
Perante isto decidi começar do inicío."Memória de Elefante" e agora "Os Cús de Judas", que as edições de bolso tornaram mais acessivel à minha carteira.
E a cada parágrafo, a certeza de que ainda agora a descoberta começou...

Obrigado pelo comentário.
Bem vindo e volte sempre.

28/3/09 05:19  

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