quinta-feira, março 24, 2005

os heróis do Pó

Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
(...)


in "Pó", Pedro Mexia

Um pouco a despropósito, se calhar, mas apetece-me pincelar algumas frases sobre a criação artística, ou a arte, em geral, e a crítica, em particular.
Posso usar como pontos de partida "Um Peixe Fora de Água", de Wes Andersen, último filme que vi no cinema, ou um livro qualquer do jovem poeta/crítico Pedro Mexia, ou a crítica feita a cada um.
Na escolha de um filme ainda insisto (uma espécie de crença) em passar os olhos pelas estrelinhas da Kathleen Gomes (perdoem se estiver mal escrito), do Luís Oliveira e dos outros compinchas do Público, para eventual elucidação ou desempate entre escolhas. Em relação ao filme de que vos falo: 4/5 estrelas. Aposta certa, pensei eu na minha santa inocência. "Um Peixe Fora de Água" é, ao que parece, uma comédia. E uma comédia, achava eu, tem que ser inequívoca, senão passa a ser uma "comédia inteligente", que é qualquer coisa que nos faz rir porque nós queremos muito que ela nos faça rir e não porque o faça na verdade, espontaneamente. Quem esteja de mau humor e procure a "comédia extraordinária" para levantar o ânimo, esqueça: ao contrário das boas comédias, esta não funciona. Música: David Bowie. Realização: planos fantásticos, muita originalidade. Personagens: nem ficção, nem realidade. Actores: doeu-me ver o Bill Muray e a Cate Blanchet perderem pontos em papeis tão fraquinhos...mas nota-se que se esforçaram. Argumento: zero (digo eu, claro). Pelo que só posso adivinhar que as 4/5 estrelas são atribuídas pela carga pseudo que o filme tem e que as comédias chamadas ligth (Loiras à Força, Um Sogro do Pior, Alguém Tem Que Ceder, etc) não têm. Claro que a soudtrack bowieana contribui bastante, e a originalidade por si só supera dúvidas sobre a designação de comédia. Enfim, uma frustração...
Em relação a Pedro Mexia. Fiquei assustado ao ler um artigo do Professor Eduardo Lourenço que falava (entre outras coisas) de Mexia como um dos críticos jovens mais geniais da actualidade. Igualmente espantado quando vejo Pedro Sena Lino escrevendo no "Mil Folhas" sérias linhas sobre a poesia de P.M., num trabalho crítico que eu considero louvável. Eu juro que tento mas não consigo perder mais que dois segundos a tentar peceber o que é que de novo e de bom P.M. põe nos seus textos...
E tudo isto me assusta. Assusta-me não conseguir perceber (devo ser eu, concerteza) nada de realmente único em certos filmes ou livros. Porque não sou especialista, talvez. Mas então não é a arte universal e acessível a todos? Pode não se gostar, mas o que é bom é inequivocamente bom. Aos olhos do supra-culto citadino ou do homem-do-campo. Assusta-me premiar-se a forma pela forma, associar-se automaticamente a originalidade à genialidade. Assusta-me que se construam génios a partir do exterior, quando, muitas vezes, nem sequer os prórios tiveram tal intenção, numa ascensão involuntária. Assusta-me que se contruam pessoas e "obras de arte" na ilusão de uma falsa busca interior da verdade. Assusta-me que a arte seja hoje fruto de uma construção e não de uma criação. E que essa construção seja egocêntrica em vez de introspectiva. De fracos não reza história, é certo. Mas assusta-me pertencer ao tempo do qual, com tão poucos "valentes", somente ficarão para a posteridade estes único e ímpares "heróis do Pó".